As coincidências são um lugar comum no cotidiano das pessoas, até bem mais do que elas próprias imaginam. Algumas são bem corriqueiras, como chegar ao ponto de ônibus no momento em que está chegando a condução certa ou ligar o rádio e estar tocando a musica que se gosta. Porém, existem outras que nos fazem realmente pensar, como – embora seja uma lenda urbana – o caso da mãe que ganhou na loteria jogando as datas de aniversários dos filhos.
O que realmente faz algumas coincidências extraordinárias e outras não é o nosso desejo intenso de explicar as primeiras, na crença de que algo especial aconteceu numa espécie de conspiração do universo para que as coisas tenham acontecido da forma como se deram.
Sagan dedicou, em seu livro “O mundo assombrado por demônios”, um capítulo inteiro sobre isso. Ele acreditava que o cérebro humano é viciado em significados, isto é, faz uma busca incessante por padrões escondidos debaixo da astronômica massa de dados sensoriais que processa a todo o momento.
Segundo Sagan, “… as fases de sorte, longe de ser extraordinárias, são esperadas até para eventos aleatórios. O que seria surpreendente é a ausência dessas fases”.
Vamos imaginar o seguinte exemplo proposto por Sagan: suponha que você jogue uma moeda dez vezes e no final obtenha quatro séries de caras seguidas, qual seria sua reação? Acreditaria estar exercendo algum controle extra-sensorial sobre a moeda? Ou simplesmente “estávamos numa fase de caras”?
Pode-se até argumentar que “parece regular demais para ser obra do acaso”, mas se levar em consideração que se estava jogando a moeda antes e que, certamente, haverá outras rodadas futuras após ter obtido essa serie específica de caras, percebemos que na verdade ela se inseria numa seqüência maior e bem menos interessante.
Quando é permitido prestar atenção a alguns resultados e ignorar outros, sempre se é capaz de provar que há algo de excepcional seja no que for. Pode-se, inclusive, até dizer tratar-se de “uma fase de sorte”. Essa é uma das inúmeras falácias relacionadas à argumentação de fatos.
Em seu artigo “O poder da coincidência” (versão complementar), Novella argumenta que “o que a maior parte das pessoas não sabe ou não querem acreditar é que coincidências, mesmos as notáveis, não são assim tão surpreendentes. Na verdade a maioria são ocorrências inevitáveis sem nenhum significado especial”.
Para ele, basicamente quatro fatores influenciam para essa interpretação errônea das coincidências pelas pessoas:
1. Temos uma pobre compreensão inata de probabilidade;
2. Acreditamos que todos os efeitos devem ter causas deliberadas;
3. Não compreendemos as leis que regem os números verdadeiramente grandes;
4. Sucumbimos facilmente à validação seletiva — a tendência de lembrar somente correlações positivas e esquecer um número muito maior de insucessos.
No que tange o primeiro fator, não é difícil compreender por que a maioria das pessoas tem dificuldades em probabilidades, já que essa disciplina não é comum nos currículos escolares básicos.
Moran & Lopes , no artigo “A Estatística e a Probabilidade Através das Atividades Propostas em Alguns Livros Didáticos Brasileiros Recomendados para o Ensino Fundamental”, discutem exatamente a importância deste tema no currículo escolar.
Para esses autores a estatística é algo indissociável do ensino das probabilidades, e que mesmo a primeira não aparece como estratégia da solução de problemas de pesquisa, como deveria ser trabalhada em todos os níveis de ensino.
Dessa forma argumenta-se que: “… a concepção de estatística que permeia os livros da 1ª à 8ª série é de um fazer empobrecido, por não inserir a construção dos conceitos estatísticos e probabilísticos na metodologia da resolução de problemas”.
Dentre as várias questões apontadas no artigo, destaca-se o fato de que nas séries iniciais sejam introduzidas algumas atividades que dão a entender que a estatística fornece o problema propriamente dito, confundindo-se aí o problema com sua solução.
Além disso, até a porcentagem, a qual é uma ferramenta matemática necessária à construção do conceito de probabilidade, gravemente não aparece em nenhum momento vinculado ao raciocínio estatístico, sendo que mesmo a palavra “probabilidade” é substituída insistentemente por “chance” quando a idéia é inserida nos livros escolares, dificultando ainda mais ao aluno a aproximar-se do pensamento cientifico da disciplina.
O artigo propõe que “o ensino da estocástica no Brasil seja ampliado rapidamente”, como forma de solucionar a questão, e, assim, “possa-se formar, de fato, cidadãos mais aptos a tomadas de decisão, especialmente em situações envolvendo a presença do acaso”.
Segundo os autores a maior inclusão do tema no currículo escolar básico traria diversas vantagens, dentre elas:
“… um maior interesse do aluno para a resolução de problemas relacionados com o mundo real e com outras matérias do currículo; influência positiva na tomada de decisões destes quando dispõem somente de dados afetados pela incerteza; facilidade na análise crítica da informação recebida através, por exemplo, dos meios de comunicação; um tipo de compreensão que proporciona uma filosofia do azar, de grande repercussão para o entendimento do mundo atual“.
De fato, compreender probabilidade pode dar o poder necessário para entender melhor o significado, ou a falta de significado, de muitos eventos do dia a dia. Para Novella:
“… uma compreensão precária de probabilidade e estatística, comum em nossa sociedade, leva as pessoas a se surpreenderem mais do que deveriam quando confrontadas com coincidências, por conseguinte um salto fácil em direção a uma explicação metafísica”.
Esse argumento passa também pelo segundo fator apontado por ele, onde se atribui explicações miraculosas a todo tipo de fato bizarro, porém plenamente plausível probabilisticamente, na crença de que exista “algum motivo especial” por trás do evento.
Uma forma de driblar essa crença é compreendendo melhor a “lei dos números grandes”, o terceiro fator de Novella. Essa lei estatística declara que numa amostra grande o suficiente, mesmo um evento extremamente improvável torna-se provável e, dessa forma, qualquer coisa, por menor que sejam suas chances de acontecer, em algum momento ocorrerá.
Utilizemo-nos de um exemplo hipotético para ilustrar esse fato: numa pesquisa feita pela Catho – uma empresa de recolocação profissional – afirmava-se que apenas 1% dos pedidos de aumento feitos ao chefe é realmente atendido, sendo assim inútil tal procedimento. Bem, apoiando-se na lei dos números grandes, bastaria então que o colaborador faça o pedido uma vez por dia para, em um ano, ter, em média, pelo menos duas delas atendidas, e se topar-se tentar diariamente durante cinco anos seguidos, pelo menos em 12 delas ter-se-ia sucesso.
Mesmo tratando-se, evidentemente, de uma estratégia irreal e cômica, o exemplo demonstra como mesmo um percentual pequeno se torna significante num montante de tentativas maior.
No mundo real um exemplo a ser citado é o interessante caso do coronel brasileiro Oscar Rocha da Silva Filho que, em 2003, sobreviveu a uma queda de 3,5 mil metros. Oscar pertence ao Esquadrão Aéreo-Terrestre de Salvamento (Pára-Sar), lotado no Rio de Janeiro, grupo de elite da Força Aérea Brasileira, e na época afirmou que o pára-quedas principal e o reserva falharam. No acidente acabou por cair em um campo, em cima de uma árvore, sofrendo apenas uma fratura no nariz, duas vértebras e o esterno quebrado. Quais as chances de alguém sobreviver a uma queda dessas? Pequenas, quase improváveis, poder-se-ia dizer.
Porém, o caso do sortudo coronel não é único no mundo. Michael Holmes, um instrutor britânico de pára-quedismo acrobático, teve o mesmo destino no final de 2006. Ele sobreviveu com apenas uma fratura no tornozelo a um salto de 3,6 mil metros na Nova Zelândia, quando seus dois pára-quedas falharam, caindo sobre uma plantação de amoras.
A lição que se tem desses fatos é que, dentro dos inumeráveis saltos de pára-quedas que já ocorreram no mundo, sempre encontraremos casos surpreendentes como esse, e isso se deve diretamente à lei dos números grandes.
O último fator de Novella é de longe o mais perigoso, pois trata de nossa tendência, muitas vezes inconsciente, de selecionar fatos felizes em detrimento de outros de menor sorte.
Essa característica pode ser explicada pela forma que nossa memória foi moldada pela natureza em seu processo evolutivo. O homem, de certa forma, é programado para procurar padrões e conexões por toda parte, e isso acaba muitas vezes por atrapalhar. Para Novella, “… na tentativa de encontrar padrão em tudo, nosso cérebro nos leva continuamente a sugerir explicações e até mesmo invocar forças estranhas — tais como poderes psíquicos — que não existem”.
É bem conhecido da medicina o fato de muitas pessoas que ficaram surdas atestarem ainda ouvir vozes, cânticos ou música “vindos do além” (vide Ludwig van Beethoven), bem como aqueles que perderam membros afirmarem sentir a presença “espiritual” destes ainda ligados a seus corpos. Isso tudo é produzido por nosso cérebro, que teima em procurar padrões auditivos ou sensoriais advindos de membros defeituosos ou ausentes.
Quando nossa propensão natural à validação seletiva é levada em conta, unindo-se ao nosso desejo em acreditar em algo ligado ao destino, o verdadeiro poder ilusório da coincidência é percebido.
Por fim, Henri Poincaré, matemático conhecido por sua posição extremamente intuísta nas ciências exatas, nos dá a seguinte explicação do motivo desse comportamento humano: “Nós também sabemos o quanto a verdade é muitas vezes cruel, e nos perguntamos se a ilusão não é mais consoladora”.